domingo, maio 06, 2012

EUA (V) – Lendo Lincoln



Livros há como os melões que só depois de abertos se sabe o que lá vem dentro.

Na loja do Smithsonian do Museu de História Americana em Washington, comprei um pequeno volume de discursos de Abraham Lincoln sobre a Guerra Civil Americana. Comprei mais por lembrança do que por leitura, como poderia ter levado qualquer pechisbeque como um íman de frigorífico ou um pisa-papéis em formato de Casa Branca: era pequenino, barato, com uma encadernação engraçada, cabia num canto da mala. Porém, para minha surpresa, ao folheá-lo no avião de regresso, revelou-se grande leitura de viagem e quando aterrei em Lisboa já tinha virado a última página.

O livrito, editado pela Penguin, foi lançado para comemorar os cento e cinquenta anos da guerra e acolhe nove discursos proferidos por Lincoln com o confronto entre nortistas e sulistas como tema central ou pano de fundo. Inclui o célebre “Gettysburg Address”, uma curta alocação proferida na inauguração do cemitério militar local, quatro meses e meio depois da decisiva batalha do mesmo nome, um textozinho em filigrana sobre a responsabilidade que é honrar a memória e a herança dos que morreram pela liberdade dos outros e que inspiraria um século mais tarde o “I have a dream” de Martin Luther King. Inclui a mais documental Declaração de Emancipação, os “Inaugural Addresses”, discursos de tomada de posse como presidente, e discursos de forte combate político sobre o tema da escravatura. No seu conjunto, têm uma escrita agradável e elaborada, uma imagética poderosa – se bem que por vezes um pouco barroca – e sugerem uma oratória convincente.


De entre todos, o discurso para mim mais notável e o que mais revela a visão e a estatura de Lincoln como homem de Estado é o que abre o volume e foi dirigido um quarto de século antes da guerra aos alunos do liceu de Springfield no Illinois, sua terra natal. Lincoln tinha então vinte e oito anos e era um jovem advogado e deputado estadual, já com fama de bom paleio mas ainda longe da capital e da presidência. Para este longo discurso (quinze páginas), o tema que escolheu foi a perpetuação das então ainda recentes instituições políticas americanas.

Começa por relembrar a situação geográfica americana para concluir que o perigo nunca virá de fora, mas pode vir de dentro. Lincoln descreve então alguns casos de linchamento ocorridos em vários pontos da União, alguns deles de carácter racial, para concluir que embora sejam casos pontuais e nalguns deles as vítimas até fossem criminosas, o crescimento na população do sentimento de que as leis podem ser continuamente pisadas e desprezadas, que os direitos individuais estão “ao alcance do capricho de uma turba”, alienará mais cedo ou mais tarde o povo dos que o governam. E daí virá o perigo. Para conter esse perigo, a solução que preconiza é difundir uma veneração total pelo primado da Lei: “que cada um se lembre que violar a Lei é chafurdar no sangue dos seus pais, destruir o próprio carácter e a liberdade dos seus filhos”.

Mesmo assim sendo, Lincoln vê nuvens negras no horizonte. Por um lado, tem como muito provável – por inerente à natureza humana – que mais cedo ou mais tarde apareça um homem com génio e ambição suficientes para tentar o poder absoluto; por outro, à medida que vão desaparecendo os homens da geração que participou na revolução americana, as suas memórias e o  seu exemplo, que serviam em cada família de baluarte contra o autoritarismo,  vão pesando menos:

- Eles eram os pilares do templo da liberdade; e agora que ruíram o templo irá cair, a menos que nós, seus descendentes, os substituamos com outros pilares talhados da sólida pedreira da razão sóbria.

E termina com um incentivo aos rapazes que o ouviam que defendam essa herança até ao fim. Isto sintetizando muito a riquíssima verve do homem...

Há em todo o discurso uma notável visão premonitória, vinte e cinco anos antes, de que vinham aí momentos complicados e que aqueles jovens teriam que estar preparados para eles. Isto porque Lincoln tinha claras algumas ideias que só o bom senso, valência rara na nossa espécie, permite. Primeiro, que a liberdade de todos pode permanentemente ser posta em risco por poucos – não há nunca um fim da História. Em segundo, que ao longo do tempo se vai perdendo a componente afetiva dada por aqueles que conquistaram a liberdade e que só a razão pode levar os que se seguem a defendê-la. Finalmente, que quando os componentes mais fundamentais de uma democracia começam, mesmo que episodicamente, a ser contornados ou corroídos, as coisas vão fatalmente acabar mal.

A leitura deste discurso poderia não passar de um curioso exercício intelectual se não nos déssemos ao trabalho de comparar o alcance da visão de Lincoln com a miopia das lideranças de hoje. Onde ele viu a vinte e cinco anos, não se vislumbra hoje a vinte e cinco dias. Ele percebeu que tocar no que é básico, mesmo que só às vezes, é o caminho certo para o desastre enquanto hoje os líderes europeus vão experimentando tirar esta pedrinha aqui e este tijolo acolá, na esperança que o edifício aguente. Ele avisou a malta para estar por isso pronta para tudo, estes nem sabem a que malta se dirigir.

Portanto, como destapa-olhos, vale a pena ler Lincoln.


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