domingo, janeiro 16, 2011

Lições do pleistoceno


“Love hides in the molecular structure”
The Doors, in “Love hides”


No início do século passado, a construção de uma via-férrea de serviço a uma mina rasgou a direito pelo meio de uma colina em Atapuerca, local ermo nos arredores da cidade de Burgos. A “trinchera del ferrocarril”, como é hoje conhecida, seccionou o maciço cárstico, zona de rocha calcária onde naturalmente se formam cavernas, poços e outros ocos, e revelou algumas destas formações. Tal permitiu que se encontrassem em quantidade vestígios animais e humanos muito antigos. Nos últimos trinta anos, o sítio tornou-se um dos maiores centros mundiais de arqueologia paleolítica, tendo-se nele achado cerca de quatro quintos dos vestígios humanos até agora descobertos no planeta.

Estive esta semana num encontro de empresa em Burgos, cidade “muito espanhola”, como eles lá dizem, onde Franco montou quartel-general no início da Guerra Civil e os ossos do Cid campeador repousam num esconso da catedral. A “parte turística” do ajuntamento foi uma visita aos achados pré-históricos. Fazia muito frio e o manto de nevoeiro, que na cidade envolvia com charme as torres das igrejas e as arcadas da Praça Maior, convidando ao passeio, transformava-se no descampado de Atapuerca em final de tarde num banho húmido e gélido, que não apelava a sair do autocarro para dentro de uma garganta sombria. Ainda por cima para ver pedras.

Mas lá fomos, para nossa sorte. Recebeu-nos o Doutor David Canales, um jovem doutorado em arqueologia, que segundo nos explicou passa as manhãs a descascar o metro cúbico de calcário que lhe está atribuído e as tardes no laboratório a lavar pedrinhas e ossinhos e a cruzar bases de dados. Como já aqui o disse, não tenho particular afecto por partículas doutorais e outras exibições de peneira. Mas neste caso apeteceu-me usar o “Doutor” por uma razão muito simples: porque é o que está certo fazer-se.

Canales tinha para nos mostrar apenas umas paredes barrentas com uns papelitos numerados presos aqui e ali. Poderá pois surpreender que tenha mantido cinquenta pessoas suspensas hora e meia do seu saber, do seu humor, da sua vivacidade, todas esquecendo a temperatura que caía e a noite que se aproximava. Um professor nato, mesmo que nunca tenha subido ao estrado. Pelo fio da sua voz fomos conduzidos até há cinquenta, cem, quinhentos mil ano atrás, e vimos um mundo austero, onde se cruzavam ursos e tigres de dente de sabre com homens, mulheres e crianças que procuravam o seu caminho. Mostrava-nos um biface, uma pedra talhada de ambos os lados e com arestas diversas e, com movimentos bruscos sobre o seu corpo, como aquela ferramenta poderia ser usada para decepar um membro, para raspar um osso para retirar carne, para esmagar sementes, para partir a tromba ao próximo. “O canivete suíço do paleolítico!”, concluía, “não ter um na altura era como não ter hoje iPod”.

Tratou de nos tirar alguma ideia feitas, como a originada por aquela imagem da evolução em que os hominídeos se vão sucessivamente erguendo até ao “homo sapiens”. Abriu uma mala, retirou dois crânios, um do “homem de Heidelberg”, outro de um homem moderno. Deve ser giro ir trabalhar com uns crânios na bagagem. Mostrou-nos o furo de inserção da coluna: exactamente no mesmo sítio. “Os quadrúpedes têm este furo na parte de trás do crânio, os gorilas um pouco mais abaixo. Este, o de Heidelberg, tem o furo na base porque andava tão de pé como nós”. Ou como a de que o homem descende do macaco: “Temos antepassados comuns, dos quais divergimos. Somos irmãos dos chimpanzés, primos dos gorilas, primos afastados dos orangotangos”. Às vezes parece que não tão afastados, pensei eu.

Para estes cientistas, há três características que marcam e justificam fortemente o caminho percorrido pelos nossos antepassados: o bipedalismo, que libertou as mãos e facilitou o desenvolvimento do uso de ferramentas; o carnivorismo, que permitiu alimentar as necessidades de energia de um cérebro sucessivamente maior e mais potente; e a socialização que maximizou as probabilidades de sobrevivência de seres fisicamente fracos numa envolvente extraordinariamente variável e hostil. Não consigo deixar de sorrir ao pensar nos vegetarianos que conheço e que, com aquele desdém chique pelos atrasados culturais que comem bifes, acham que recuperam a sua humanidade com saladas e arroz por grosso. Afinal, o homem saiu mesmo estruturalmente carnívoro. Sem carne crua, ainda estaríamos com cento e tal centímetros cúbicos de caixa craniana, a fugir à frente dos predadores, em vez dos confortáveis 1300/1400 c.c. actuais, que servem para fugir aos credores. É tão diferente como equilibrar-se numa Piaggio 125 ou pilotar uma Suzuki Hayabusa GSX1300R – a mota do verdadeiro carnívoro.

Mas sobre o que realmente interessa na humanidade, tivemos mais e melhor. Neste local descobriu-se um crânio completo de “homo heidelbergensis”. Os arqueólogos puseram-lhe catitamente o nome de Miguelón, em homenagem ao ciclista Miguel Indurain, na altura ás do pedal. Sabe-se que o Miguelón levou violentamente na fronha, por um oponente que era destro, pois apresenta várias pancadas do lado esquerdo do crânio. Uma delas partiu-lhe um dente e provocou-lhe um abcesso (que ficou marcado no osso) e posteriormente a morte por septicemia. Este processo demorou algum tempo. O Miguelón estava todo partido, completamente inoperacional, mas não morreu de fome. Alguém tratou dele. Alguém foi buscar comida para ele e não foi ao Pingo Doce. Alguém arriscou a vida por um moribundo, centenas de milhares de anos antes de Kant escrever sobre imperativos categóricos. Repetindo a conclusão do Doutor David Canales: “O que se passou nesta caverna? Amizade? Amor? Não sei. Os vossos mil e quatrocentos centímetros cúbicos de caixa craniana que respondam”.

Outro achado notável foi o de uma criança – a Benjamina, apesar de não se saber se rapaz ou rapariga – que apresentava uma craniossinostose, uma união prematura dos ossos do crânio, que neste caso seria pré-natal. Esta criança nasceu muito provavelmente com deficiências psicomotoras graves. Apesar delas, morreu com mais de uma década de idade, talvez próximo de ser adulta. Ou seja, mau grado ela ser um fardo para o grupo, foi tratada e alimentada e desenvolveu-se durante anos. Teve mais sorte do que se tivesse nascido numa família norte-americana sem seguro de saúde.

Em Atapuerca os investigadores não descobrem só o sublime. Ainda não chegaram ao ponto de encontrar os maxilares vorazes de um tipo da banca de investimento, mas vão-se deparando com a morte violenta, o ódio ao outro, os primeiros vestígios de canibalismo. Apesar disto, ao sair da garganta estreita da trincheira, não pude impedir-me de pensar no exemplo do Miguelón e da Benjamina e dos que incógnita e carinhosamente deles trataram. Macacos? Macacos somos nós.

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